Não é exagero dizer que vivemos uma transformação radical no papel que o instituto contrato cumpre no Direito Administrativo. Desde o final da primeira metade do século passado até os dias de hoje, a ideia de um contrato de que participe o Poder Público percorreu uma longa trajetória, que vai desde a rejeição de que o Poder Público pudesse travar relações obrigacionais com os privados (BANDEIRA DE MELLO, 1979, p. 681; 1967, p. 25 e ss.) até o momento atual, em que se pode falar no contrato como instrumento para exercício das atividades-fim da Administração, e não apenas como instrumento para suas atividades-meio. Não é objetivo do presente texto aprofundar essa discussão complexa e polêmica. Alguns autores já o têm feito com grande êxito (MOREIRA NETO, 2008; ALMEIDA, 2008; ESTORNINHO, 2009). Meu objetivo aqui é apenas delinear a trajetória da ideia de contrato de que participa a Administração Pública, apontando para a importância do instituto na construção de uma Administração menos autoritária e mais consensual. Para isso, iniciarei expondo como a doutrina enfrentou o tema da Administração partícipe da relação contratual. Em seguida, tocarei os principais elementos caracterizadores e darei uma noção de contrato administrativo. Feito isso, passarei a tratar do regime jurídico desses contratos, analisando criticamente a unicidade desse regime. No tópico final, procurarei enunciar algumas manifestações da nova contratualidade, em que o Poder Público participa não em condição sobranceira, mas como parte da relação obrigacional. 2. A gênese da noção de contrato administrativo A ideia de contrato administrativo nem sempre foi pacífica na doutrina. No século passado, importantes autores rejeitavam essa ideia alegando que tal fórmula continha uma contradição. Se a Administração, centro da autoridade, participava da relação, não poderia haver contrato. Este pressupunha autonomia da vontade e equivalência entre partes contratantes. E o Estado-Administração, portador do poder soberano, nem tinha vontade, nem poderia ser nivelado à outra parte contratante. Partia-se aí da concepção de que, em se tirando as hipóteses de o Estado, autorizado por lei, firmar contratos regidos pela legislação civil (os chamados contratos privados da Administração), nos demais contratos não haveria que se falar na existência de um tipo peculiar de contrato administrativo, mas sim de um ato jurídico bilateral. Por essa visão, somente poderíamos falar de contrato no núcleo da relação econômico-financeira. Embora ainda hoje haja autores que mantenham essa posição crítica ao conceito (BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 563), o debate restou superado a partir dos anos de 1960 do século passado, firmando-se a doutrina por entender que o instituto contrato pertenceria à Teoria Geral do Direito e que, no âmbito do Direito Administrativo, o contrato seria revestido de certas características peculiares, que conformariam o contrato administrativo. As principais peculiaridades dessa espécie de contrato corresponderia à presença de cláusulas exorbitantes (MEIRELLES, 1990, p. 191) e ao fato de não existir na sua origem nem a liberdade em contratar, pois a escolha do privado seria submetida em regra ao dever de licitar, ne, propriamente uma autonomia da vontade, pois a finalidade pública vincularia o agir da Administração contratante (Dl PIETRO, 2008, p. 242; MEIRELLES, 1990, p. 190). A doutrina brasileira consolidou-se em torno da tese de que os contratos administrativos são espécies do gênero contrato bilateral, tendo por objeto o fornecimento de bens, a prestação de serviços, a execução de uma obra por um particular (pessoa física ou jurídica) ou, ainda, a alienação de bens públicos ou a delegação da prestação de um serviço público ou a outorga de direito privativo de uso. Para a formação desse vínculo, seria necessário o atendimento de determinados requisitos (dotação orçamentária autorização específica, licitação pública), limitadores da margem de liberdade da Administração para contratar. Na execução desse contrato, haveria uma posição de supremacia da Administração, caracterizada pelas chamadas cláusulas exorbitantes (ENTERRIA; FERNÁNDEZ, 1997, p. 692), predicadoras da prerrogativa para unilateralmente alterar, rescindir, intervir, fiscalizar e punir o particular. De outro lado, haveria, em favor do particular, uma reserva quanto às chamadas cláusulas econômicas da avença (preço, condições de pagamento, preservação da equivalência monetária, balanço entre obrigações e remuneração, etc.), de tal sorte que estas seriam não apenas vinculantes para a Administração, mas também incólumes diante das alterações ditadas pelo Poder Público ou mesmo daquelas decorrentes de fatores imprevistos (TÁCITO, 1971). Essas concepções foram gradualmente incorporadas pela jurisprudência e, depois, pelo Direito Positivo. Vêm hoje refletidas em diversos dispositivos da Lei 8.666/1993 (LGL\1993\78), dentre os quais se destacam os arts. 58, 65, 67 e 79, inciso I (prerrogativas exorbitantes), e pelos arts. 57, § 1º, 65, inciso II, alínea d, e § 6º (preservação do núcleo econômico pactuado). 3. A consequência: contrato administrativo como fonte relativa de obrigações Ao se afastar das teorias que negavam a existência do contrato administrativo, contraditoriamente a doutrina brasileira acabou por esvaziar o contrato como fonte de obrigação para a Administração. Como se costumou asseverar, descaberia obrigar a Administração a cumprir o quanto pactuado num contrato, exigir a execução da norma contratual em favor do particular em muitas situações, porquanto não seria possível que "o interesse público ficasse vergado ao interesse particular" (BANDEIRA DE MELLO, 2002, p. 568). Com efeito, a Teoria do Contrato Administrativo no Brasil, para consagrar o conceito, não refutou a tese de que a Administração poderia igualar-se ao privado na relação obrigacional. Ao contrário, tomou por pressuposto que a participação da Administração numa relação contratual não lhe retiraria a posição sobranceira, superior, assimétrica. Sendo a Administração, por definição, tutora do interesse público, não poderia ela igualar-se ao privado. Disso decorreria: (a) a ausência de igualdade entre as partes; e (b) as prerrogativas de intervenção unilateral nas condições pactuadas (subjacentes às cláusulas exorbitantes). Sendo, em qualquer hipótese, a relação obrigacional assimétrica, e só podendo a Administração obrigar-se pela Lei, jamais poderia o particular contratado invocar o contrato para exigir que a Administração cumprisse o quanto se houvera obrigado. No século XX, o contrato administrativo aproximou-se da expropriação diferida. Fácil foi a difusão da concepção de relativa desvinculação da Administração das obrigações contratuais. O contrato administrativo, visto assim, não seria uma verdadeira fonte de obrigações para a Administração, mas sim uma pactuação provisória, sujeitando seu cumprimento à permanente análise de conveniência e oportunidade pelo agente público, compreendido como o único guardião do interesse público (seja lá o que isso signifique). Mesmo para sua obrigação de pagar e de preservar as condições econômicas avençadas, a fonte da obrigação seria a lei, e não o contrato. Malgrado a doutrina do equilíbrio econômico e financeiro e de sua incolumidade, o grau de vinculação das partes ao seu respectivo plexo de obrigações também seria desigual: o particular, óbvio, não poderia descumprir o quanto a que se obrigara; a Administração (sempre sob o pálio do interesse público), eventualmente, poderia esquivar-se ou postergar sua obrigação de pagar o preço ajustado. Comuns tornaram-se as situações em que o Poder Público, alegando insuficiência de recursos ou dificuldades orçamentárias, impingiu aos seus contratados reduções unilaterais de valor sem equivalente diminuição de encargos, desrespeitando sobranceiramente o próprio âmago econômico da avença. Tal assimetria mostrava-se mesmo no âmbito da obrigação de pagar (núcleo tido como incontroversamente obrigacional, pois que inerente ao núcleo econômico do contrato). Bons exemplos são os entendimentos doutrinários que refutavam a aplicação da cláusula de exceção do contrato não cumprido, por muito tempo tida pela doutrina como inaplicável ao contrato administrativo (MEIRELLES, 1990, p. 190). Apenas com o advento da Lei 8.666/1993 (LGL\1993\78) (art. 78, inciso XV) passou-se a permitir que o particular suspendesse a execução de suas obrigações caso a Administração deixasse de pagar as parcelas do preço contratado. Mesmo assim, essa possibilidade dependia da perduração da mora (por pelo menos 90 dias), não sendo aplicável a todos os contratos administrativos, como demonstra o art. 39, parágrafo único, da Lei 8.987/1995 (LGL\1995\43). É célebre episódio ocorrido há alguns anos. A Administração de um grande Município estava inadimplente há meses no pagamento das tarifas pelo fornecimento de luz. A distribuidora, amparada pela Lei, decidiu cortar o fornecimento a algumas repartições administrativas. E, assim o fez, não sem aviso prévio. Indignado, o Prefeito foi ao Judiciário combater a suspensão parcial do fornecimento, alegando que isso feria o interesse público (sempre ele), como se repartir a inadimplência contratual gerada pela má gestão municipal por lodos os usuários do serviço público também não fosse ferir o interesse público. Naquela oportunidade, célere, o Judiciário fez lembrar a todos que contratos com o Poder Público, afinal de contas, não devem ser levados a sério! Determinou o imediato restabelecimento do fornecimento. Não determinou o imediato pagamento das contas em atraso, pois isso, afinal, iria contra o interesse público. Em suma, durante muito tempo nossa cultura jurídica sustentou que a Administração não deveria estar submetida ao contrato se e quando isso contrariasse o interesse público. Como essa é uma dicção dúctil, aberta e suscetível de ser preenchida ao alvedrio administrador (AZEVEDO MARQUES NETO, 2002), o contrato administrativo transformou-se conjunto de obrigações vinculantes apenas do privado. Sob a influência do caráter autoritário da concepção de supremacia incondicional do interesse público, abriu-se campo para a relação obrigacional desigual, a partir da qual o privado deve cumprir estritamente tudo a que se obrigou (sob o risco de sofrer severas penas unilateralmente aplicadas), mas a Administração cumprirá o pactuado se e quando o interesse público (por ela revelado, também unilateralmente) permitir. Segue daí que, entre nós, o contrato administrativo, ao longo do século passado, convolou-se numa expropriação de bens ou serviços, com escolha isonômica do expropriado (por licitação, bem dito) e sem prévia indenização, mas diferida em parcelas. 4. A maldição do regime único Se, de um lado, o mantra da supremacia do interesse público levou a um esvaziamento do caráter obrigacional da Administração, o itinerário do contrato administrativo no Brasil padeceu de outro mal, também bastante peculiar ao nosso Direito. Aludo ao que chamo de maldição do regime jurídico único. Esta mazela, tenho comigo, é fruto de uma aplicação irrefletida do regime jurídico administrativo como eixo demarcador do campo temático e metodológico desse ramo do Direito. Não cabe aqui aprofundar as premissas dessa crítica. Basta apenas dizer que tal vezo decorre da sorna de três vetores: (i) o metodológico, que tem a ver com a afirmação metodológica do Direito Administrativo e da necessidade vivida no fim do século XIX para demarcar seus lindes em relação a outros ramos do Direito; (ii) a influência forte do Direito Administrativo francês, em que a segregação entre regime comum e administrativo é fundamental por força da dualidade de jurisdição; e iii) a influência corporativa, das mais distintas origens e propósitos, que sempre tende a unificar o tratamento jurídico dos institutos e a rejeitar modulações e matizes de regimes. Para mim, a questão aqui não reside na existência ou não de um regime jurídico específico para os atos e os negócios jurídicos travados pelo Poder Público. O problema está em pretender submetê-lo, em cada segmento do Direito Administrativo a um único regime, a um único e uniforme tratamento. Essa tendência (seria mesmo uma maldição) leva a doutrina a predicar um único regime jurídico para os cargos e os empregos públicos (rejeitando modulações necessárias a tão diversificadas funções hoje exercidas pelos agentes públicos); a defender que o estatuto das licitações deve ser uno, invariável, não obstante as compras governamentais serem diversificadas ao extremo; a sustentar que as entidades da Administração indireta devem seguir um figurino único, independentemente da Constituição, a qual expressamente determina que a Lei é que deverá criá-los ou autorizar sua criação em seu art. 37, inciso XIX, (o que supõe dispor sobre seu regime jurídico) ou, ainda, faz-nos dizer que os bens públicos seguem um único regime jurídico, malgrado a discrepância de utilidades públicas a que podem servir. Tal unicidade é a origem de várias mazelas. Impede a modulação de regime em virtude da finalidade da ação administrativa. Obsta a maior eficiência da máquina pública. Tende a tornar todas as relações de que participa o Estado relações de autoridade, marcadas pelo poder extroverso, em detrimento dos direitos dos administrados. Pois bem. Tal maldição recai também sobre os contratos administrativos. Embora possamos cogitar de uma enormidade de tipos distintos de contratos de que o poder público pode participar, nosso Direito Administrativo (aqui não só a doutrina, mas também a Lei) procura reduzir tudo a um único regime contratual. E, pior, inspirado num tipo de contrato: a empreitada para obras de engenharia, molde das disposições da Lei 8.666/1993 (LGL\1993\78). Ou seja, esteja a Administração a contratar um singelo fornecimento de água mineral, encomendar um projeto de arquitetura, comprar um sofisticado equipamento feito sob encomenda, contratar a construção de uma usina hidrelétrica ou delegar um serviço público ou a prestação de um serviço social, deveria ela se submeter a um único modelo de contrato, observar regras de um regime jurídico monolítico. E nem se diga que existem já na legislação aberturas para regimes legais diferençados, como as concessões de serviços públicos (8.987/1995), os contratos de gestão com as organizações sociais (Lei 9.637/1998 (LGL\1998\93)) ou as parcerias público-privadas (Lei 11.079/2004 (LGL\2004\2877)). Tal refutação não calha, seja porque tais leis não contemplam um regime específico completo para esses contratos, contendo lacunas; seja porque a doutrina sempre procurará interpretar as disposições específicas previstas para esses contratos a partir do regime jurídico geral, como se a Lei 8.666/1993 (LGL\1993\78) tivesse urna prevalência (como regime geral dos contratos administrativos) ou, então, como se ela servisse de pauta hermenêutica para interpretar o regime especial. Essa tendência, digamos, unicista e uniformizadora traz grandes malefícios ao terna dos contratos administrativos. Primeiro, porque faz perder a maior vantagem do instituto contrato: dispor de normas específicas, vinculantes entre as partes numa dada relação específica. Normas estas, presume-se, melhor amoldadas para aquela situação concreta, adequadas à consecução de objetivos específicos. Veja-se, por exemplo, o tema da alocação de riscos. Em cada empreendimento alvitrado pelo poder público, a distribuição dos riscos entre as partes seguirá urna matriz diversa. É impossível à Lei capturar todas as variáveis, normatizar de forma abstrata e, ao mesmo tempo, adequada o regime de alocação de riscos para todas as situações possíveis. No regime único, porém, recorre-se a certo padrão de distribuição de riscos, que, em diversas oportunidades, não corresponderá ao padrão mais vantajoso para a Administração. Segundo, porque o regime jurídico único dos contratos administrativos jamais conseguirá abarcar todas as modalidades de ajustes obrigacionais que podem interessar à Administração. O que nos leva a defender a importância dos contratos administrativos atípicos, como faz também parte da doutrina (JUSTEN FILHO, 2005, p. 488). No Direito Comparado é comum termos leis de contratos administrativos prevendo uma gama bastante diversificada de contratos típicos e cometendo à Administração Pública uma margem de liberdade para adotar contratos atípicos conforme as necessidades contingentes e específicas, devidamente justificadas. São exemplos as Leis mais recentes na Espanha (Decreto Legislativo 2/2000; ver MUNAIZ, 2000) e em Portugal (Decreto-Lei 18/2008). Note-se que não estamos a dizer que os contratos firmados pela Administração Pública não mereçam tratamento legal distinto do Direito Civil. O fato de haver um núcleo de dispositivos do Código Civil (LGL\2002\400) que (por corresponderem ao contrato como instituição da teoria geral do Direito e não apenas do Direito Privado) são aplicáveis também aos contratos administrativos não elide que o Direito Público contenha regras específicas, seja para assegurar o exercício das funções públicas dependentes do ajuste seja para conferir proteção ao particular contra a exorbitância do uso da autoridade. Contudo, essas regras deverão corresponder em cada distinta modalidade de contrato ao quanto necessário para adaptar o regime obrigacional às peculiaridades da ação estatal. Nada mais. 5. As novas configurações da contratualidade administrativa Marcado por essa herança e por essas influências, porém, o tema do contrato administrativo vive entre nós um curso de importantes mudanças. Primeiro, há uma forte tendência na doutrina de, superando as concepções autoritárias subjacentes à supremacia absoluta do interesse público (BINENBOJM, 2006; BARROSO, 2009; SARMENTO, 2005; ÁVILA, 1999), apontar os riscos da teoria das cláusulas exorbitantes, especialmente quando transformadas em vetor do autoritarismo governamental (JUSTEN FILHO, 2005, p. 480). Embora tais posições sejam minoritárias na doutrina e, surpreendentemente, pouco acatadas na jurisprudência (que segue a desaperceber que sob o pálio de defender o interesse público, muita vez se está a favorecer o abuso de poder), é nítida a evolução do tratamento do tema na produção doutrinária mais recente (por todos, ver SOUTO, 2004). O contrato administrativo vive um curso de importantes mudanças. De outro lado, assistimos na prática da Administração a mudanças relevantes. Há inegável aumento na complexidade das relações contatuais de que participa o Poder Público. A busca por soluções de financiamento das utilidades públicas (decorrência menos da crise fiscal, e mais da crescente demanda pelo provimento de direitos fundamentais) leva a uma busca de arranjos contratuais criativos e inovadores, o que pressiona por novas formas de relacionamento contratual. O engrandecimento da atuação do Estado como empresário (em campos tão diversos como o fomento à cultura, a exploração de petróleo ou ó desenvolvimento de pesquisas no campo da inovação tecnológica), a seu turno, torna absolutamente superados os modelos contratuais tradicionais, impondo a necessidade de modelos mais flexíveis, adaptáveis às múltiplas circunstâncias da atuação estatal. Esses campos de atuação contratual do Poder Público, aliados à importação de modelos de negócio jurídico do mundo privado, colocam em discussão algumas das premissas da doutrina tradicional do contrato administrativo. A própria relação assimétrica entre o Poder Público e o Privado perde força como pressuposto do contrato administrativo diante de contratos da parceria, contratos de consórcio ou mesmo contratos de delegação de serviço público controlados por entidades reguladoras autônomas: A contratualidade administrativa está presente também no exercício da autoridade estatal. Resulta que podemos identificar alguns elementos conformadores dessa nova contratualidade administrativa. Algumas tendências já podem ser notadas, a saber: (i) maior deslocamento da norma da lei para o contrato, na medida em que as leis reitoras de contratos do poder público deleguem para o contrato a normatização concreta em cada negócio jurídico; (ii) maior margem de consensualidade, inclusive na estipulação de cláusulas contratuais no âmbito de uma fase pré-contratual de negociação entre o adjudicatário do certame prévio e o Poder Público; (iii) introdução mais frequente de contratos atípicos, com a multiplicação de objetos; (iv) mais recorrente utilização de contratos por desempenho, em que o particular vincula-se não a objetos previamente estipulados, mas a metas de desempenho, ensejadoras inclusive de remuneração variável; (v) maior flexibilidade na alocação de riscos, com deslocamento de maior parcela de riscos para o privado e clara estipulação da repartição dos ganhos de eficiência com o Poder Público; (vi) flexibilização do regime de equilíbrio econômico e financeiro, com a limitação de situações de aplicação da teoria da imprevisão; e, por fim, (vii) multiplicação das hipóteses de contratos de cooperação. Certo deve estar que essas tendências estão longe de demonstrar a superação da doutrina do contrato administrativo tradicional. Elas, porém, ilustram o fato de que, no âmbito da Administração Pública em geral e dos contratos administrativos em particular, podemos vislumbrar um deslocamento o eixo da autoridade para a consensualidade. Como nos mostram autores mais descortinados, “como reflexos das novas relações juspolíticas entre Estado e sociedade, a consensualidade passa a ser urna nova forma privilegiada de administrar interesses públicos nas relações entre Administração e administrados" (MOREIRA NETO, 2008, p. 583). Veja-se que esse traço da consensualidade hoje é presente não apenas na atuação contratual do Poder Público, mas até mesmo em funções em que a autoridade é mais central. Tomemos o campo do poder de polícia, típica função em que é inerente a imperatividade. Instrumentos como a negociação regulatória (ARAGÃO, 2006, p. 3-21), a regulação contratual ou os termos de ajustamento de conduta (AZEVEDO MARQUES NETO, 2000; DALLARI, 2001; MOREIRA NETO, 2008) indicam que a consensualidade, tendo como pressuposto urna relação mais horizontal, ganha espaço em detrimento das relações verticais de submissão, subordinação e supremacia do poder público sobre o particular. Pois se a consensualidade toma lugar da imperatividade mesmo nas funções típicas de autoridade, mais razão ainda há para que no âmbito da atividade contratual da Administração tenhamos a redução do caráter assimétrico e imperativo das posições do Poder Público em detrimento do particular. 6. Manifestações da Administração contratual Nesse contexto, os contratos do Poder Público deixam de ser mecanismos meramente para exercício das atividades-meio do Estado (aquisição de bens e serviços para desempenho das funções públicas diretamente pela Administração) e passam a ser instrumentos para a consecução das próprias atividades-fim. Na atividade de polícia, temos os termos de ajuste de conduta ou a substituição da sanção por compromissos de reparação dos danos causados pela infração; no campo dos serviços públicos, temos os contratos de gestão com organizações sociais, as parcerias público-privadas e mesmo as concessões de serviços públicos de nova geração, todos com alocações de risco mais arrojadas e consentâneas com o Princípio da Eficiência. Na função de fomento, também são inumeráveis as modalidades de contratos aptos a incrementar a atividade dos particulares, como nos dão notícias os contratos de incentivo, os contratos de inovação, os consórcios de desenvolvimento de pesquisas ou os contratos de condomínio em parques ou clusters tecnológicos. Na atividade de regulação, temos, além dos compromissos de desempenho e dos acordos regulatórios, as contratações híbridas e os modelos contratuais de regulação positiva, em que o regulado obtém acessos a mercados mediante o atendimento de metas de atendimento a grupos de usuários social ou geograficamente desatendidos. Por fim, na função de intervenção na economia; há ainda mais campo para o desenvolvimento desses arranjos, mediante contratos de joint ventures, consórcios empresariais ou mesmo parcerias institucionais em que o Poder Público participa como minoritário de uma sociedade, no âmbito da qual pactua mediante acordo de acionistas (o que não deixa de ser uma espécie de contrato, vale dizer) garantias de governança e mecanismos de proteção de seu investimento. Há ainda os contratos de gestão federativa asso ciada (como os consórcios públicos, os contratos de programa e os contratos de rateio previstos na Lei 11.107/2005 (LGL\2005\2652)), bem como os contratos de gestão com entidades da Administração indireta (Constituição, art. 37, § 8º), que, se não são propriamente contratos administrativos no sentido de vincular a Administração a particulares, não deixam de ser contratos do Poder Público que fogem do pressuposto da relação assimétrica entre contratantes. Afinal, entre entes federados não há que existir subordinação hierárquica. E, entre partes de um contrato de gestão constitucional, se existia hierarquia, ela é abrandada, já que é esse o objetivo principal da assinatura dessa espécie de contrato. Vivemos, portanto, um período de transição. Como sói nesses instantes, o novo já se mostra, mas a tradição resiste. Não é incomum nesses momentos, inclusive, que o modelo prevalecente no período anterior pareça se fortalecer. Isso é fruto do último suspiro da velha ordem. Tem sido assim ao longo do tempo. Quanto mais um modelo teórico se esgarça, mais veemente tende a aparentar seu respaldo. Mas, a contratualidade administrativa é um fato. Talvez o que faltava para sepultar, finalmente, o poder de império.
CITATION STYLE
Marques Neto, F. P. de A. (2019). Do contrato administrativo à administração contratual. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura - RDAI, 3(9), 341–352. https://doi.org/10.48143/rdai/09.fmn
Mendeley helps you to discover research relevant for your work.