RESUMO: Este artigo estabelece as bases para uma hematologia amazônica com a finalidade de compreender o significado do sangue com respeito a gênero, conhecimento e cosmologia. Baseando-se na crítica da teoria do pa-triarcado elaborada por Overing e em seu estudo das concepções piaroa so-bre a menstruação, este artigo explora comparativamente as idéias de vários povos amazônicos sobre como os espíritos, os pensamentos e a força se trans-formam em corpos diferenciados por gênero. Defende que o fluxo do san-gue é concebido como uma relação, já que transporta conhecimentos a to-das as partes do corpo, unindo, e ao mesmo tempo diferenciando, homens e mulheres, e constituindo o eixo central da existência de uma pessoa ao lon-go de seu ciclo de vida. Por meio do estudo das práticas de resguardo, dieta e reclusão, mostra que a manipulação do sangue ocupa um lugar central na saúde amazônica. Sangrar é uma prerrogativa feminina e a lembrança in-corporada nas mulheres sobre o incesto primordial entre Lua e sua irmã, que fundamenta a memória e o parentesco humanos. No entanto, os ho-mens também " parecem mulheres " quando ficam sob a vingança do sangue de seus inimigos, assim como as mulheres sob a vingança de Lua. O sangrar põe a fertilidade em movimento, abrindo a comunicação entre o tempo co-tidiano e outros espaços-tempos cosmológicos, expondo ambos os gêneros ao perigo da multiplicidade transformacional, à alienação e à morte. Sua relação com o xamanismo é, portanto, fundamental. PALAVRAS-CHAVE: xamanismo amazonense, menstruação, incesto, san-gue, gênero. Em 1986 2 Joanna Overing argumentou que, se o estudo das práticas menstruais amazonenses quisessem evitar cair na obviedade de sentenciar as mulheres ao banco dos perdedores no jogo de prestígio contra os ho-mens, deveria distanciar-se de suposições teóricas sobre o patriarcalismo e beber diretamente na fonte dos entendimentos indígenas sobre egos autônomos e corpos feitos por pensamentos. Sua descrição dos colares piaroa como " contas de conhecimento sobre a menstruação " , trazidos de caixas de cristal celestiais e usados pelas mulheres sobre e " dentro " de seus corpos, tornou-se um clássico da literatura amazonense, estabele-cendo um marco no estudo das teorias indígenas sobre corporalidade e pensamento. Beleza, habilidades, fertilidade, produtos e filhos de ho-mens e mulheres, diz ela, são os seus pensamentos: são o resultado de suas capacidades de conhecimento, cuidadosamente incorporadas dos deuses e postas em prática de forma autônoma em seu trabalho. Para os Piaroa, toda capacidade cultural é bruxaria, incluindo a
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Belaunde, L. E. (2006). A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero na Amazônia. Revista de Antropologia, 49(1), 205–243. https://doi.org/10.1590/s0034-77012006000100007
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