Há um saber operante na prática que é fundamental para produzir sua renova-ção. Se desde a prática não nos dedicamos a teorizar, desperdiçamos o trabalho hu-mano da reflexão. A inovação de práticas, técnicas e teorias implicadas na abordagem das dimensões sociais e psicossociais em processos saúde-doença, tema deste texto, foi fortemente estimulada pela emergência da epidemia da aids nos anos 1980 e pela resposta social construída no Brasil. A concepção brasileira do " modo psicossocial " na atenção ao sofrimento mental, produzida no bojo do movimento pela reforma sa-nitária dos anos 1980 que resultou na organização do Sistema Único de Saúde, como veremos, está entre os antecedentes mais importantes dessa inovação. A primeira parte deste texto revisará criticamente a literatura sobre os usos e o sentido do termo psicossocial em periódicos brasileiros. Discutirei, então, como a perspectiva sobre o processo saúde-doença baseada nos direitos humanos e em análises da epidemia da aids no quadro da vulnerabilidade produziu uma vertente da psicologia social construcionista na saúde, que se define como psicossocial e em contraste com uma perspectiva sociopsicológica. Nessa vertente psicossocial, a noção de pessoa substitui a noção de " indivíduo biológico-comportamental " , que é o foco das práticas em psicologia da saúde nas abordagens que nomeamos de sociopsicológicas. A abordagem psicossocial, por outro lado, focalizará a com-preensão da " intersubjetividade em cena " implicada em cenários socioculturais; nos encontros em serviços e programas de saúde, abordará as cenas cotidianas e a trajetória de cada pessoa, concebida como sujeito de discursos e de direitos. 1 Este texto é uma edição corrigida do texto originalmente publicado na Revista Temas em Psicologia, v. 21, n. 3, 2013, em espanhol e inglês. Contei com o incentivo da bolsa PQ/ CNPq (Produtividade em Pesquisa/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). A_psicologia_social.indb 167 16/05/2017 12:13:21 168 A psicologia social e a questão do hífen A chamada " resposta brasileira à aids " , que testou a factibilidade e o efeito das abordagens psicossociais, tem sido um conjunto de programas e práticas organiza-dos de modo pioneiro desde os anos 1980 (BERKMAN et al., 2005; KERRIGAN et al., 2013; NUNN, et al., 2009; PAIVA, 2002). Foi elogiada internacionalmente por expandir abordagens individualistas, por considerar o contexto social e adotar políticas na perspectiva da defesa e promoção de direitos humanos. Vários autores discutem o quanto ela dependeu da articulação entre pesquisadores e atores gover-namentais e da sociedade civil, que organizaram intervenções estruturais e institu-cionais antes mesmo da existência do SUS (Sistema Único de Saúde). Inspiração para outros países até o final da primeira década do século XXI, a produção de informação rigorosa que monitorava com o rigor da ciência as várias faces da epi-demia e sempre contou com a participação de pessoas vivendo ou convivendo com a aids. Essa peculiaridade também distingue a resposta global à aids de respostas a outros agravos de saúde. No Brasil, seu mais notável sucesso foi a organização de uma rede de serviços de saúde articulados intersetorialmente, que, orientados pelos princípios do SUS, têm oferecido o acesso universal e gratuito à testagem e ao trata-mento integral aos que são diagnosticados com a infecção pelo HIV, assim como à prevenção centrada na promoção do uso do preservativo (BERKMAN et al., 2005; GRECO; SIMON, 2007; MALTA; BEYRER, 2013; PAIVA, 2002). É intuitivo reconhecer que essas ações dependeram fortemente de abordagens psicossociais que, como veremos, estão inspiradas na tradição das ciências humanas e sociais aplicadas ao adoecer, derivando técnicas e práticas da virada construcio-nista nos estudos da sexualidade e do gênero, saberes que na última década do século XX foram integrados às práticas em saúde baseadas nos direitos humanos (GRUSKIN; TARANTOLA, 2008, 2012; KALICHMAN; DINIZ, 2009; KERRI-GAN et al., 2013; NUNN et al., 2009; PAIVA, 2002, 2008, 2012a). Com resulta-dos comparáveis aos países mais ricos do hemisfério norte desde os anos 1990, no Brasil as práticas psicoeducativas e de aconselhamento garantiram a capacitação de profissionais em vários setores (saúde, educação, justiça, assistência social, nas empresas), investiu-se na compreensão e mitigação do processo de estigmatização e discriminação de pessoas afetadas pela epidemia na interação serviço-usuário. As políticas públicas e programas de aids conseguiram apoiar a adesão à medicação e ao preservativo em contextos de grande vulnerabilidade social. Muitas dessas práticas são resultantes de uma produção brasileira sobre as dimensões psicossociais do processo saúde-doença, cujos autores nem sempre são psicólogos. Essa produção, teórica e prática, tem merecido a adesão de pesqui-sadores de outras áreas dedicados ao sofrimento psicossocial: sofrimento mental coproduzido pelo racismo e sexismo, afetados pela tuberculose e por hepatites virais, por outras doenças sexualmente transmissíveis, pelo uso abusivo drogas, A_psicologia_social.indb 168 16/05/2017 12:13:21
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PAIVA, V. (2017). Psicologia na saúde: sociopsicológica ou psicossocial? In A psicologia social e a questão do hífen (pp. 167–192). Editora Edgard Blucher. https://doi.org/10.5151/9788580392357-12
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