BRASIL ENTROU no século XXI com um aparelho industrial moderno e di-versificado e um setor de agronegócios que lhe confere a liderança mundial em vários setores 1 . No entanto, a sua estrutura ocupacional reflete o atra-so social do país. Segundo a PNAD de 2002, os empregados sem carteira assina-da constituíam 24,2% da PEA e os empregados por conta própria 22,3%. 4,2% das pessoas ocupadas trabalhavam unicamente para o próprio consumo, e 11,7% não tinham rendimento monetário algum. 27,1% dos trabalhadores tinham rendi-mentos inferiores ou iguais a um salário mínimo, 26,3% de um a dois salários mí-nimos, 12,4% de dois a três salários mínimos, enquanto apenas 1,3% superava os vinte salários mínimos. A economia brasileira é constituída por uma quantidade de empresas modernas e eficientes, algumas de status mundial, imerso num sem número de atividades de baixíssima produtividade. A riqueza está concentrada nela ao passo que uma parcela importante da população busca a sobrevivência na informalidade 2 . Para acomodar os novos contingentes que entram na força de trabalho, de ordem de 1,5 milhão, e saldar a imensa dívida social acumulada sob a forma de desemprego e subemprego 3 durante quarenta anos de crescimento econômico e de modernização rápidos porém socialmente perversos, seguidos de mais de duas décadas quase perdidas, o Brasil precisa se transformar numa gigantesca fábrica de empregos. Para tanto, deverão ser gerados de dois a 2,5 milhões postos de tra-balho, número este definido pela OIT como decente, ou seja, empregos e/ou auto-empregos realizados em boas condições e convenientemente remunerados, fazendo com que a força de trabalho empregada cresça a um ritmo anual de pelo menos 2,5%. No entanto, como bem observou José Pastore, " o Brasil vive um tempo paradoxal: euforia no mercado financeiro e desespero no mercado do trabalho " 4 . Os resultados alcançados no primeiro ano do governo do Presidente Lula no que diz respeito à redução por dois terços da taxa de risco, revalorização dos papéis brasileiros, balança comercial altamente positiva, superávit fiscal superior a 5% do PIB e valorização das bolsas, mereceram rasgados elogios por parte de Inclusão social pelo trabalho decente: oportunidades, obstáculos, políticas públicas IGNACY SACHS O I G N A C Y S A C H S ESTUDOS AVANÇADOS 18 (51), 2004 24 altos funcionários do Banco Mundial. David de Ferranti e Vinod Thomas, res-pectivamente vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e diretor do escritório desta entidade no Brasil, chegaram a falar de um " consenso de Bra-sília " – novo modelo que viria a substituir o consenso de Washington, compati-bilizando o desenvolvimento econômico com o progresso social. Para eles, o consenso de Brasília aponta para um novo paradigma de desenvolvimento, de maior interesse para o conjunto dos países do Sul 5 . Assim, o choque de credibilidade junto à comunidade internacional de banqueiros foi coroado de sucesso, mas ao preço de um desempenho medíocre da economia real: no ano de 2003 a taxa de crescimento foi praticamente nula, o rendimento médio do trabalho caiu 12,9% nas zonas metropolitanas, pelo sexto ano seguido, e a taxa de desemprego só não aumentou porque foram criados nu-merosos subempregos sem rendimento monetário ou com rendimentos abaixo de um salário mínimo. O aumento do trabalho precário foi a principal característica do mercado em 2003. Entre dezembro de 2002 e dezembro de 2003, subiu em 812 mil o número de trabalhadores ocupados nas seis principais regiões metropolitanas. Em contrapartida, a quantidade de empregados com carteira de trabalho no setor privado encolheu em 907 mil, e enquanto cresceu em 446 mil o número de empregados sem carteira e em 334 mil o de trabalhadores por conta própria 6 . Um estudo recente realizado pelo Instituto de Economia da UFRJ a pedi-do da Cepal e coordenado por David Kupfer, apresentou dados estarrecedores sobre a eliminação de empregos que se seguiu à abertura da economia brasileira em 1990. A modernização tecnológica do país fechou 8,98 milhões de postos de trabalho no setor agropecuário, 3,63 milhões na indústria manufatureira, 902 mil na administração pública e 757 mil na construção civil. A produtividade do trabalho na agropecuária cresceu, de 1990 a 2001, em média, 5,12% ao ano, e na indústria, 2,52%. Por sua vez, as importações provocaram a redução de 1,54 mi-lhão de postos de trabalho. Ao todo, perderam-se assim, em onze anos, 12,3 milhões de empregos. Ao mesmo tempo, criaram-se na economia doméstica 11,96 milhões de empregos e nas exportações 3,58 milhões, com um saldo global positivo, onze anos, de 3,24 milhões. Este último número deve ser comparado com a entrada anual de 1,5 a 1,8 milhão de pessoas novas no mercado de trabalho. Os anos 2002 e 2003, para os quais os dados não estão ainda disponíveis, conheceram um desempenho si-milar. O crescimento pífio da economia não compensa os efeitos da moderniza-ção tecnológica 7 . Esses números merecem alguns reparos. A perda de empregos industriais é, em parte, compensada pela criação de ocupações no setor de serviços, para o qual as indústrias terciarizaram atividades de limpeza, manutenção etc. A ques-tão que se coloca é saber se a modernização poderia ter sido menos destruidora de empregos, caso fossem aplicadas políticas diferentes na agricultura, na
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Sachs, I. (2004). Inclusão social pelo trabalho decente: oportunidades, obstáculos, políticas públicas. Estudos Avançados, 18(51), 23–49. https://doi.org/10.1590/s0103-40142004000200002
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