As grandes cidades e a vida do espírito (1903)

  • Simmel G
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Abstract

Os problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida — a última reconfiguração da luta com a natureza que o homem primitivo levou a cabo em favor de sua existência corporal. Se o século XVIII pode clamar pela libertação de todos os vín-culos que resultaram historicamente no estado e na religião, na moral e na economia, para que com isso a natureza originalmente boa, e que é a mesma em todos os homens, pudesse se desenvolver sem empecilhos; se o século XIX reivindicou, ao lado da mera liberdade, a particularidade humana e de suas realizações, dadas pela divisão do trabalho, que torna o singular incomparável e o mais indispensável possível, mas com isso o atrela mais estreitamente à complementação por todos os outros; se Nietzsche vê a condição para o pleno desenvolvimento dos indivíduos na luta mais brutal dos singulares, ou o socialismo, precisamente na manu-tenção do nível mais baixo de toda concorrência — em tudo isto atua o mesmo motivo fundamental: a resistência do sujeito a ser nivelado e con-sumido em um mecanismo técnico-social. Onde os produtos da vida es-pecificamente moderna são indagados acerca de sua interioridade; onde por assim dizer o corpo da cultura é indagado acerca de sua alma — como me parece ser atualmente o caso no que diz respeito às nossas grandes cidades —, a resposta precisa ser buscada na equalização pro-movida por tais formações entre os conteúdos individuais e supra-indivi-duais da vida, nas adaptações da personalidade, mediante as quais ela se conforma com as potências que lhe são exteriores. O fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individuali-dades da cidade grande é a intensificação da vida nervosa, que resulta * AS GRANDES CIDADES E A VIDA DO ESPÍRITO 578 da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores. O homem é um ser que faz distinções, isto é, sua consciência é estimula-da mediante a distinção da impressão atual frente a que lhe precede. As im-pressões persistentes, a insignificância de suas diferenças, a regularida-de habitual de seu transcurso e de suas oposições exigem por assim dizer menos consciência do que a rápida concentração de imagens em mudan-ça, o intervalo ríspido no interior daquilo que se compreende com um olhar, o caráter inesperado das impressões que se impõem. Na medida em que a cidade grande cria precisamente estas condições psicológicas — a cada saída à rua, com a velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social —, ela propicia, já nos fundamentos sensíveis da vida anímica, no quantum da consciência que ela nos exige em virtude de nossa organização enquanto seres que operam distinções, uma oposi-ção profunda com relação à cidade pequena e à vida no campo, com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais uniformemente de sua ima-gem sensível-espiritual de vida. Com isso se compreende sobretudo o caráter intelectualista da vida anímica do habitante da cidade grande, frente ao habitante da cidade pequena, que é antes baseado no ânimo e nas relações pautadas pelo sentimento. Pois estas lançam raízes nas ca-madas mais inconscientes da alma e crescem sobretudo na calma propor-ção de hábitos ininterruptos. Em contraposição a isto, o lugar do entendi-mento são as camadas mais superiores, conscientes e transparentes de nossa alma; ele é, de nossas forças interiores, a mais capaz de adaptação. Ele não necessita, para acomodar-se com a mudança e oposição dos fenô-menos, das comoções e do revolver interior, sem os quais o ânimo mais conservador não saberia se conformar ao ritmo uniforme dos fenômenos. Assim, o tipo do habitante da cidade grande — que naturalmente é en-volto em milhares de modificações individuais — cria um órgão protetor contra o desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento, para o que a intensificação da consciência, criada pela mesma causa, propicia a prerrogativa anímica. Com isso, a reação àque-les fenômenos é deslocada para o órgão psíquico menos sensível, que está o mais distante possível das profundezas da personalidade. Essa atuação do entendimento, reconhecida portanto como um preservativo da vida subjetiva frente às coações da cidade grande, ramifica-se em e com múltiplos fenômenos singulares. As grandes cidades sempre foram o lu-gar da economia monetária, porque a multiplicidade e concentração da troca econômica dão ao meio de troca uma importância que não existiria na escassez da troca no campo. Mas a economia monetária e o domínio

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Simmel, G. (2005). As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Mana, 11(2), 577–591. https://doi.org/10.1590/s0104-93132005000200010

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