Q uando se diz que a vida "emergiu" na Terra, não se está dizendo que algo pré-existente deu as caras, como um golfinho que emerge na superfície da água. O conceito de emergência está associado à ideia de novidade. Porém, no estágio avançado em que a ciência se encontra, grandes áreas do conhecimento foram unificadas por leis físicas, químicas e biológicas, que envolvem en-tidades que se conservam, como os átomos, mas que se rearranjam de diferentes formas para gerar toda a variedade do mundo natural. Até que ponto pode dar certo o projeto de "reduzir" os fenômenos naturais, como a vida, a um conjunto de moléculas que se organizam de diferentes formas com o passar do tempo? Até que ponto a novi-dade na natureza ou a criatividade humana podem ser explicadas? Em que medida é preciso postular uma "emergência" de entidades e de propriedades para sanar as limitações do reducionismo? Neste caso, como seria esta teoria da emergência, nos diferentes campos das ciências naturais, humanas e formais? Estas são perguntas para as quais não se tem respostas consensuais. Neste artigo, e nos demais que compõem este Núcleo Temático, diferentes abordagens serão dadas a essas questões. Em poucas palavras, o conceito de emergência refere-se a um estado de coisas no qual as propriedades de um certo domínio não se reduzem completamente às propriedades de outro domínio (seriam "autônomos"), apesar de serem, em algum sentido, produzidos por este outro domínio (ou serem "dependentes" deste). Esta caracterização deixa clara uma certa tensão ou ambiguida-de do conceito, uma "produção sem redução", uma "dependência com autonomia", que constitui a força e a fraqueza do conceito de emergência. A força surge do fato de que estamos estendendo nossa linguagem e nossa teoria para os limites de nosso conhecimento, região em que nossas intuições e expectativas lógicas às vezes nos enganam, de maneira que talvez esse conceito ambíguo seja nossa melhor aproximação à verdade. Mas a fraqueza surge justamente das tensões lógicas inerentes ao conceito, que ficam evidentes quando se abandona o uso pragmático desse conceito e se busca analisá-lo de maneira mais rigorosa. emeRgência no empiRismo bRitânico O conceito de emergência surgiu no contexto da filosofia empirista britânica do século XIX. Ao tratar da "composição das causas", John Stuart Mill (1) forneceu o seguinte exemplo, que modificamos um pouco. Imaginemos uma solitária bola de bilhar em cima de uma mesa, e duas pessoas que irão dar uma tacada em diferentes direções. Se apenas um jogador der a tacada, diríamos que uma causa individual (o impulso) gera um efeito específico (a velocidade da bola na correspondente direção). O que aconteceria se ambas as pessoas dessem sua tacada ao mesmo tempo? Ora, pelo princípio de composição de forças, o efeito final seria a soma vetorial dos efeitos individuais. Em termos atuais, diríamos que, nesse caso, a soma das causas é linear. Mill chamou esse tipo de composi-ção de causas de "homopático", distinguindo-o do "heteropático", que incluiria os casos de soma não linear de causas, como aqueles que tipicamente acontecem na química. Por exemplo, misturam-se dois líquidos transparentes, como uma solução de hidróxido de sódio e fenolftaleína, e o resultado não é transparente (como seria de se esperar em uma soma homopática), mas cor de rosa. O fato de as causas na química e na fisiologia não se somarem de maneira homopática indicava, para Mill, que é "impossível deduzir" as leis dessas áreas a partir das leis da física. Esta é uma expressão da tese da emergência: as leis da química e da biologia seriam irredutíveis às leis da física, no sentido de não serem dedutíveis a partir destas. Mill também concebia que enunciados da química e da biologia podem ser deduzidos de leis fundamentais dentro de cada área res-pectiva. No caso da química, haveria leis fundamentais que seriam irredutíveis às leis da física, mas que serviriam para reduzir os outros enunciados da química. Nossas teorias se estratificariam em domí-nios autônomos. Essas ideias de Mill foram estudadas e desenvolvidas por dois outros pensadores no final do século XIX: o filósofo e psicólogo escocês Alexander Bain (1870) e o filósofo inglês George Henry Lewes (1875). Este último cunhou o termo "emergência": "Ressaltar que não sabemos como essas condições múltiplas emergem no fe-nômeno da consciência é dizer que o fato sintético não foi resolvido analiticamente em termos de todos os seus fatores. É igualmente verdadeiro que não sabemos como a água emerge do oxigênio e hi-drogênio. O fato da emergência nós conhecemos; e podemos estar seguros de que o que emerge é a expressão de suas condições" (2). A posição de Lewes, como ele esclarece na sequência do texto, se contrapõe à do espiritualista, que defende que a mente tem existên-cia independente do corpo. Sua postura é claramente materialista, ao escrever que as manifestações da consciência "são" as ações do mecanismo nervoso. inteRlúdio filosófico: ôntico veRsus epistemológico Nesse trecho de Lewes, apresenta-se uma distinção muito importante na filosofia, entre afirmações "ontológicas" e "epistemológicas". Quan-do Lewes escreve que a água "é" a combinação de hidrogênio e oxi-gênio, ele parece estar se referindo a como as coisas são na realidade, independente da presença ou não de um observador, ou de mentes inteligentes. Esta é uma afirmação ôntica. Por outro lado, ao sugerir que o conceito de emergência se aplica a situações em que "não sabe-mos" como fazer a redução, ele está fazendo uma afirmação epistemo-lógica, relativa ao conhecimento da realidade, e não à realidade em si. Esta distinção nem sempre é muito clara. Afinal, como seria pos-sível falar da realidade em si, sem que seja por meio de nosso conhe-cimento dela? Quem aceita esta tese, de que não faz sentido se refe-rir a uma realidade independente de conceitos humanos, ou a uma realidade inobservável, está adotando uma postura antirrealista ou "fenomenalista" (no sentido de que só temos acesso aos fenômenos 4_NT_SBPC_44_p19a50.indd 22
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Pessoa Jr, O. (2013). Emergência e redução: uma introdução histórica e filosófica. Ciência e Cultura, 65(4), 22–26. https://doi.org/10.21800/s0009-67252013000400011
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