Análises simplistas, comumente encontradas nas visões de senso comum sobre as empresas privadas, os mercados e a pró-pria economia capitalista tendem sempre a enxergar no papel das empresas uma mácula de natureza ética e ambiental, como se estas fossem instituições " canibais " por definição. Na outra ponta ideológica desse debate, também de forma simplista, mui-tos consideram que a autorregulação das corporações, através de normas voluntárias de responsabilidade social e ambiental e de ética nos negócios, pode ser capaz de reverter os vários problemas ambientais e sociais relacionados à ação empresarial nas socieda-des modernas. Mais sensato é compreender as atividades dos ato-res de mercado, sejam eles grandes corporações transnacionais ou pequenas e médias empresas nacionais, como atividades que precisam ser legitimadas junto à sociedade para se reproduzirem, ou seja, para continuarem a existir (2; 6; 7; 8). No contexto contemporâneo, ainda que em um ritmo aquém do necessário, a sustentabilidade tem se tornado um requisito para a continuidade das operações empresariais nos mercados, re-sultando tanto no aumento do rigor das leis relativas aos impactos ambientais quanto também em compreensões cada vez mais presentes nas expectativas social-mente construídas em relação aos empreendi-mentos empresariais. As instituições vigentes na sociedade (normas e regras formais e informais que regulam a vida social) incorporaram, atual-mente, a compreensão da reciclagem, e também da catação, como atividades necessárias à susten-tabilidade, não apenas dos territórios urbanos, mas de todo o planeta. O mundo descobriu que a reversão de materiais recicláveis no processo produtivo não é apenas uma questão favorável à proteção ambiental, mas também uma forma de inclusão social e uma atividade de mercado extremamente rentável (9; 10). No contexto brasileiro, as empresas passaram a ser responsabi-lizadas pela destinação e reaproveitamento dos resíduos derivados de seus produtos fabricados. Isto exige das empresas mais do que ações pontuais para atender à legislação pois, dentro desse novo cenário que se desenha, ficam claras as vantagens, inclusive econô-micas, da reversão de materiais e/ou da reciclagem nas diferentes áreas e funções organizacionais. Do design e projeto de produtos e serviços, passando pela produção, distribuição, coleta, triagem e reversão na cadeia produtiva, distintos saberes, qualificações, pro-fissionais e áreas precisam estar integrados em novas estratégias corporativas. Além disso, tal realidade aumenta significativamen-te a dependência empresarial em relação aos atores externos às empresas. No caso da reciclagem no Brasil, e em vários países em desenvolvimento, há principalmente a necessidade de parcerias com coletivos de catadores (2; 3; 8; 11). A aproximação entre empresas e catadores se dá em um contexto marcado por relações de poder e de ressignificação de papéis e expec-tativas (12; 13). Essa compreensão é essencial para se entender mais profundamente as novas complexidades inerentes à governança dos resíduos sólidos urbanos e a procrastinação da PNRS. Além da permanência de visões estereotipadas e precon-ceituosas quanto aos catadores e também quanto à capacidade organizacional das associações de catadores – remetendo a eles sempre um papel de fragilidade, baixa efetividade no trabalho, inconstância e incompetência gerencial, e incapacidade de tra-balhar em grande escala na gestão de resíduos sólidos urbanos –, outros elementos dificultam o diálogo mais equilibrado entre atores do Estado, das empresas e da sociedade civil, incluindo-se aí os catadores e o Movimento Nacional de Catadores de Mate-riais Recicláveis (MNCR). A visão de senso comum – de que os catadores não conse-guem atuar de forma qualificada, efetiva e eficiente em diferentes etapas da gestão de resíduos urbanos – está presente entre dife-rentes profissionais com formação superior nas distintas áreas de conhecimento que estão relacionadas à reciclagem, indo desde a medicina e segurança do trabalho, passando pelas engenha-rias e chegando aos profissionais de gestão (11). Essa concepção equivocada sobre o papel e a efetiva capacidade dos catadores na gestão de resíduos sólidos está alinhada aos interesses das grandes corporações prestadoras de serviços de limpeza urbana, várias delas sempre ávidas em permanecer monopolizando essa atividade, sob o pretexto da escala, da desorganização das co-operativas de catadores e da baixa qualificação formal desses trabalhadores. Também o lobby empresarial a favor da incineração avança pelo mesmo caminho. No entanto, quando se estuda mais a fundo o mercado de reciclagem e o papel dos catadores na gestão de resíduos sólidos urbanos, vários desses mitos vêm ao chão. Capazes de detectar e reinserir materiais recicláveis dificilmente localizáveis pelos grandes operadores de limpeza urbana, os catadores também cumprem uma função educativa e simbólica essencial no contex-to urbano, ao conferir cara, rosto, personalidade e história para a reciclagem. Ao contatar o morador de porta em porta, acabam por gerar uma aprendizagem ambiental na separação de materiais descartados dentro das residências muito mais significativa do que as campanhas midiatizadas de educação ambiental. Além disso, servem para relembrar diariamente que a cidade, suas ruas e sua infraestrutura pertencem a todos e não apenas aos detento-res de meios e recursos para viver e se locomover mais rapidamen-te. Esses são serviços ambientais de natureza simbólica difíceis de serem transformados em variáveis econômico-financeiras e de serem levados em conta na tomada de decisão sobre a governança de resíduos sólidos urbanos. Ainda assim, são essenciais para a sustentabilidade das cidades. (3; 4; 14). os catadores tamBém cumprem uma função educativa e simBólica essencial
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Teodósio, A. S. S., Dias, S. F. L. G., & Santos, M. C. L. dos. (2016). Procrastinação da política nacional de resíduos sólidos: catadores, governos e empresas na governança urbana. Ciência e Cultura, 68(4), 30–33. https://doi.org/10.21800/2317-66602016000400011
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