Memórias

  • Izquierdo I
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Abstract

O tempo flui, como um rio, aquele ao qual Heráclito disse que não pode-mos descer duas vezes. Há, basicamente, duas maneiras de conceber o fluxo do tempo: desde o passado em direção ao futuro, ou desde o futuro em direção ao passado (BORGES, 1960). Em qualquer um dos casos, o fluxo nos atravessa num ponto, que denominamos presente. Um ponto não tem superfície nem vo-lume; é intangível e fugaz. É curioso que, em ambas concepções do tempo, o futuro (ou o passado) sejam conseqüências de algo quase imaterial como é o presente; de um simples ponto. Esse ponto evanescente, porém, é nossa única posse real: o futuro não existe ainda (e a palavra ainda é uma petição de prin-cípio) e o passado não mais existe, salvo sob a forma de memórias. Não há tempo sem um conceito de memória; não há presente sem um conceito do tem-po; não há realidade sem memória e sem uma noção de presente, passado e futuro. Memória são as ruínas de Roma e as ruínas de nosso passado; memória tem o sistema imunológico, uma mola e um computador. Memória é nosso sen-so histórico e nosso senso de identidade pessoal (sou quem sou porque me lem-bro quem sou). Há algo em comum entre todas essas memórias: a conservação do passado através de imagens ou representações que podem ser evocadas. Re-presentações, mas não realidades: as ruínas de Roma não são a Roma imperial; um disco da Nona Sinfonia gravado por Toscanini, Karayan ou Kleiber não eqüivale à sua execução, nem à Nona Sinfonia que Beethoven concebeu. Cer-tamente não à que Beethoven tinha em mente quando, já totalmente surdo, a re-geu pela primeira vez em Viena, em março de 1824: a orquestra já tinha con-cluído, há vários compassos, e o compositor, de olhos fechados, continuava regendo. Quando se diz a palavra memória, a primeira que salta à evocação não é a memória das molas, dos discos ou dos computadores; é a memória das expe-riências individuais dos homens e dos animais, aquela que de alguma maneira se armazena no cérebro. Desde um ponto de vista prático, a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências; a aquisição de memórias denomina-se aprendizado. As experiências são aque-les pontos intangíveis que chamamos presente. Não há memória sem aprendizado, nem há aprendizado sem experiências. Aristóteles já disse, 2.000 anos atrás: "Nada há no intelecto que não tenha es-tado antes nos sentidos" (MARSHALL, 1988, p. 378). Não inventamos memó-rias. As memórias são fruto do que alguma vez percebemos ou sentimos. Os sonhos, que são em boa parte recombinações estranhas de memórias, provêm do

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Izquierdo, I. (1989). Memórias. Estudos Avançados, 3(6), 89–112. https://doi.org/10.1590/s0103-40141989000200006

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