RESUMO: A alimentação do homem é um dado cultural que tem uma importância pelo menos igual àquele pura e simplesmente alimentar. Reservando uma atenção particular à relação que encontramos, entre dado cultural e dado alimentar/ " natural " , o presente artigo levará em consideração o fato de que estamos falando de um alimento muito particular: trata-se do homem que se torna, dentro de uma estrutura altamente ritualizada, alimento para outro homem, o qual, por sua vez, vive na perspectiva, altamente significativa para sua cultura, de se tornar, um dia, ele mesmo alimento para os outros. Pelo fato de reconhecer a importância do dado cultural no que diz respeito à alimentação do homem, a Antropologia se apresenta como perspectiva de análise imprescindível. Por outro lado, ela constituirá o esboço de um estudo crítico sobre sua própria caraterística de compreensão/digestão da alteridade cultural. Além do mais, a colocação da antropofagia ritual (" sagrada ") no centro de nosso trabalho nos impõe o ponto de vista de uma metodologia de estudo histórico-religiosa. A utilidade dessa perspectiva de estudos está toda contida na adjetivação " ritual " , que acompanha esta forma específica de antropofagia. Trata-se, conse-qüentemente, de esclarecer esses termos/conceitos (aos quais a escola histórico-religiosa tem dedicado tanta atenção), muitas vezes assumidos de forma acrítica, oferecendo uma significativa contribuição e problematização aos estudos históricos e antropológicos contemporâneos. O presente texto propõe, portanto, uma análise da antropofagia no Novo Mundo nos séculos XVI e XVII, em relação a uma perspectiva, a indagação antropológica, problematizada por uma metodologia de indagação: a História das Religiões. Para tal debate, entendemos nos referir àquela que é conhecida pelo nome de " Escola Italiana de História das Religiões " e que se reconhece no trabalho pioneirístico empreendido por Raffaele Pettazzoni e proficuamente levado para frente por Brelich, De Martino, Lanternari, Sabbatucci, Massenzio. PALAVRAS-CHAVE: Culturas Tupi, Antropofagia, História das Religiões, sacrifício, ritualidade, lógica do mito, trocas ritualísticas. -132 -ADONE AGNOLIN. ANTROPOFAGIA RITUAL E IDENTIDADE CULTURAL ENTRE OS TUPINAMBÁ Introdução Selvagens e insaciáveis comedores de carne que habitam as margens mais extremas da sociedade ocidental: até o fim do século XV o termo " antropófago " manteve inalterado seu próprio significado clássico. Mas, ao encerrar-se o século XV, a extraordinária descoberta dos selvagens do Novo Mundo amplia, de maneira aparentemente ilimitada, tanto as possibilidades das descobertas geográficas, quanto o número dos selvagens, habitantes das novas, imensas fronteiras da cultura. Além do mais, essa descoberta torna evidente o fato de que, ao redor da prática antropofágica americana, começa a tecer-se um sistema de traduções – tanto da alteridade americana em face da Europa, quanto das novas e inquietantes alteridades culturais européias – que contribui para que as considerações sobre a colonização da América se tornem, por exemplo, um pretexto para os propagandistas da fé católica porem a nu os horrores da Reforma. De fato, a Europa torna, na esteira da Antigüidade clássica, a falar de si através da imagem dos gentios bárbaros que teimam em comer carne humana. Como já vimos em um trabalho nosso (Agnolin, 2000: XXI-XXXIII), os próprios Ensaios de Montaigne encontram uma parte consistente de sua inspiração, na tentativa de relativização da cultura européia, justamente nessa " utilização " , muito peculiar em sua época, da nova alteridade americana. Em seu trabalho Le cannibale, Lestringant relê, ao longo de uma bela análise diacrônica, a mudança que acompanha essa imagem do canibalismo na Europa, de Colombo até a época colonial. Sintetizando esse percurso cultural europeu, ele ressalta como a degradação da imagem do outro, desde a idealização heróica da Renascença até os crepúsculos tempestuosos do romantismo, se acompanha durante o mesmo período de uma incompreensão crescente da antropofagia. Ao modelo de explicação através do rito, que é o primeiro, se substitui logo, em nome da filosofia e da ciência, um esquema determinista que restabelece a prática à matéria e o costume à sujeição natural. Vítima de um meio ambiente hostil
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Agnolin, A. (2002). Antropofagia ritual e identidade cultural entre os Tupinambá. Revista de Antropologia, 45(1), 131–185. https://doi.org/10.1590/s0034-77012002000100005
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