Não pude conhecê-lo pessoalmente em sua imponente e impressionante gestualidade que se fez lenda, uma gestualidade vocal, corporal e de idéias, idéias performáticas. E pode-se dizer que era um brasileiro absolutamente típico. Nascido em Praga, de família judaica, de língua alemã, chegou ao Brasil como muitos imigrantes o fizeram ao longo dos dois últimos séculos. Mas, mais do que ser brasileiro, Vilém Flusser era um " antropófago " 2 da melhor estirpe: devorou a cultura brasileira da mesma maneira como a cultura brasileira devorou as culturas que aqui aportaram. Foi com as ferramentas da " Antropofagia " que Flusser passou a se deliciar com os mais diversos artefatos e fatos da mídia e seus desenvolvimentos. Foi o olhar do antropófago que fez Flusser enxergar muito à frente o cenário futurológico que apenas se descortinava. Ele deu muitos cursos e palestras no Brasil, também na " minha " universidade, mas não tive a chance de ouvi-lo, não imaginei que aquele pensamento presencial por gestos fosse transformar-se em imagem, em ícone, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante. Enquanto eu próprio estava na Alemanha para meu " banquete " de doutorado, escrevendo sobre a antropofagia dadaísta e devorando tudo o que o velho continente me oferecia para minha formação, Flusser já tinha devorado o processo de devoração ele mesmo, para devolver à velha Europa a radicalidade visceral perdida ao longo dos mesmos séculos. Mais uma vez estávamos tão próximos e tão distantes. Estudei em Berlim com dois grandes mestres muito próximos de Flusser, Harry Pross e Ivan Bystrina. Este, exilado da Primavera de Praga, da mesma geração de Flusser, apenas quatro anos mais novo. A mesma Praga que o jovem Vilém deixou aos vinte anos, o também jovem Ivan deixou aos 34. Pelas mãos de Harry Pross, Bystrina é trazido para lecionar na Universidade Livre de Berlim. Pelas mesmas mãos de Pross, Flusser, então já morando na França, veio para sua primeira palestra na Alemanha. Pross organizou, de 1984 a 1993, em sua pequena aldeia, Weiler, 1 Artigo publicado no Japão em: Kondo, Kojin/ Suga, Kejiro (Orgs.) How to talk to photography. Tokyo: Kokushokankokai, 2005, p.87 a 94. Em japonês, com tradução de Ryuta Imfuku e Yuka Amano. 2 Refiro-me aqui ao movimento de vanguarda histórica chamado " Antropofagia " . Movimento radical, desdobramento do Modernismo brasileiro, teve como um dos principais atores e autores Oswald de Andrade. O Movimento Antropofágico propunha, sob a metáfora da devoração, um procedimento radical de recepção crítica dos fluxos culturais, a contrapelo dos nacionalismos e igualmente a contrapelo dos colonialismos. A metáfora se funda no relatos históricos dos primeiros viajantes europeus no Brasil sobre os indígenas canibais, sobretudo no livro do alemão Hans Staden, A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-1555).
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Contrera, M. S., & Baitello Junior, N. (2006). Na selva das imagens: Algumas contribuições para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação. Significação: Revista de Cultura Audiovisual, 33(25), 113. https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2006.65623
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