resumo O presente artigo visa mostrar o significado da filosofia biológica da técnica em Gilbert Simondon. Essa rubrica coloca em ação uma leitura da filosofia da técnica do filósofo francês como uma ontologia regio-nal no interior de sua ontologia geral ontogenética, que, nesse regime específico, baseia-se em um mo-delo do orgânico. Para tanto, mostraremos que a individuação dos objetos técnicos, sua concretização marcada pela superdeterminação funcional, obriga-nos a pensá-los em sua organicidade e desde uma organologia geral. Ademais, os conceitos de adaptação e de ambiente associado também contribuem en-quanto aspectos biológicos que acompanham a concepção de Simondon do modo de existência dos seres técnicos. Como resultado, veremos que quanto mais concreto e adaptado – na série de sua evolução espe-cífica –, mais o objeto técnico se aproxima da individualidade propriamente biológica. Essa aproxima-ção não terá, entretanto, o sentido de uma assimilação completa entre o técnico (especialmente, o maquínico) e o orgânico. Na autoprodução vital, permanece sempre um resto para além do maquínico, cuja demonstração é erigida por Simondon, por fim, com a ideia de uma origem vital absoluta dos obje-tos técnicos enquanto " mutação orientada " . Apontaremos que tal origem não tem base meramente hu-mana, mas se estende também para outras esferas do domínio vital. Palavras-chave ● Simondon. Seres vivos. Objetos técnicos. Máquinas. Filosofia da técnica. Introdução Em " Máquina e organismo " , Georges Canguilhem afirma que buscou-se quase sempre, a partir da estrutura e do funcionamento da máquina já construída, explicar a estrutura e o funcionamento do organismo; mas se buscou raramente compreender a própria construção da máquina a partir da estrutura e funcionamento do organismo (1952, p. 124). Nesse mesmo ensaio, o filósofo francês elucida, por fim, algumas iniciativas nessa última direção que ele designava como uma " filosofia biológica da técnica " (Can-guilhem, 1952, p. 154), isto é, como uma tentativa de ler as máquinas segundo o mode-scientiae zudia, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 307-34, 2015 307 http://dx.doi.org/10.1590/S1678-31662015000200004 04_Lopes.pmd 27/07/2015, 16:37 307 308 Wendell Evangelista Soares Lopes scientiae zudia, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 307-34, 2015 lo do organismo. É uma das intenções deste artigo mostrar que Gilbert Simondon, que foi aluno de Canguilhem, levou até certo ponto essa tarefa. Mais especialmente, o es-copo aqui visado é mostrar como, em sua reflexão, o filósofo pensa o modo de existên-cia dos objetos técnicos a partir do contexto de sua filosofia do vivente. Como pensar a individuação vital em Simondon implica necessariamente contextualizá-la dentro de sua própria reflexão sobre a individuação em geral, da ontogênese enquanto tal, resul-ta disso que a tese principal, A individuação à luz das noções de forma e de informação (2005a [1958]), e a tese complementar, Do modo de existência dos objetos técnicos (1989 [1958]), devem ser lidas como um argumento contínuo, dentro do contexto de uma ontologia genética geral, a filosofia biológica da técnica aparecendo aí como ontologia regional. Aqui, entretanto, não revisitaremos a ontologia geral simondoniana em sua integridade, mas iremos antes concentrar-nos na elucidação da filosofia biológica da técnica. Nossa estratégia será identificar elementos fundamentais do orgânico que re-aparecem como fatores orientadores da análise dos objetos técnicos. Essa tese tropeça inicialmente com o que defende Michel Tibon-Cornillot, para quem Simondon, embora recuse conceder aos objetos técnicos o estatuto servil de ciências aplicadas, " não buscou ocupar o lugar vazio aberto pela problemática das rela-ções entre os objetos técnicos e os organismos vivos, essa famosa organologia evocada por Canguilhem no início de sua conferência " (2002, p. 167). Não obstante, ao que parece, Tibon-Cornillot compreende mal a própria significação de uma " filosofia bio-lógica da técnica " . Para Canguilhem, na história do desenvolvimento dessa " ciência " , para além da teoria da projeção, isto é, das tentativas teóricas de Alfred Espinas e Ernst Kapp, um grande passo foi dado com a concepção da técnica como " tática de vida " em Spengler, e com as ideias desenvolvidas por Leroi-Gourhan que, além de corroborar a tese de que a técnica é uma projeção do corpo, aplica também a teoria evolucionista a sua reflexão do progresso técnico. Ora, justamente este passo da filosofia biológica da técnica, na qual se busca uma aproximação sistemática entre biologia e tecnologia, re-presenta a base para uma virada de perspectiva em relação à visão cartesiana de que a invenção técnica é o resultado da mera aplicação de um saber, pois ela aparece antes como uma extensão do fazer biológico enquanto tal. Nesses termos, a perspectiva que afasta a tecnologia da visão usual de ciência aplicada mostra-se não só como uma filo-sofia da técnica orientada pelo conhecimento biológico, mas também pensa a técnica a partir de sua origem biológica. É porque tem origem vital que ela admite a comparação com o devir vital. Para a análise da temática de uma filosofia biológica da técnica em Simondon, irei concentrar-me nos três problemas fundamentais da reflexão ontológica simon-doniana sobre o modo de existência própria dos objetos técnicos, a saber, (1) o sentido 04_Lopes.pmd 27/07/2015, 16:37 308
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Lopes, W. E. S. (2015). Gilbert Simondon e uma filosofia biológica da técnica. Scientiae Studia, 13(2), 307–334. https://doi.org/10.1590/s1678-31662015000200004
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