Com base na descrição etnográfica do processo administrativo instaurado a partir do sumiço de uma cafeteira em um órgão público federal, este artigo propõe que a transposição ponderada e criativa da distância entre o esquematismo das fórmulas burocráticas e a complexidade das situações às quais elas se dirigem é tão constitutiva da burocracia quanto suas expressões mais bizarras, cuja insensatez anedótica frequentemente resulta em violência e injustiça. No caso em questão, cuja análise integra um estudo mais amplo sobre práticas burocráticas e procedimentos disciplinares na administração pública, dois aspectos se sobressaem: de um lado, as prescrições normativas conferem ao processo um impulso próprio, que prenuncia sanções aos servidores formalmente implicados no desaparecimento do bem; de outro, e ao mesmo tempo, sua tramitação desencadeia um investimento cuidadoso de diferentes atores e instâncias para conter um movimento cego em direção a resultados indesejáveis. Essas condições permitem problematizar a consideração usual da discricionariedade no serviço público – que chamarei de discernimento, aproximando-me de certo uso nativo – como expressão de autonomia ou arbítrio individual. Em vez disso, a etnografia realça o caráter intrinsecamente coletivo do discernimento burocrático, sem o qual a efetivação consequente das normas não seria possível.
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Bevilaqua, C. B. (2020). Burocracia, criatividade e discernimento: lições de uma cafeteira desaparecida. Revista de Antropologia, 63(3). https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2020.178843
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