Respeite meus cabelos, brancos Chico César O Brasil mudou. E mudou ali onde, ao lon-go de décadas, suspeitou-se que estaríamos dian-te do irredutível: aquelas representações que afir-mavam traduzir o que seria a nossa identidade nacional. Como numa espécie de suspensão do tempo, imaginou-se, durante décadas, um Brasil que se realizaria no espaço, e que não seria outro se não o país que resultasse do encontro das três raças constitutivas de nossa nacionalidade. Pode-mos afirmar, sem medo, a existência de uma lon-ga tradição discursiva (e política) que predestina-va o Brasil à superação de sua marca de origem, a violência inerente ao sistema escravista, estando assim a construção da nação condenada a superar a distância inicial imposta aos grupos formadores. É Gilberto Freyre quem cria um verdadeiro esque-ma espacial e funcional numa forma mais acaba-da, o qual representaria a superação da distância existente entre a casa-grande e a senzala, entre o sobrado e o mocambo, num processo social espe-cífico, a mestiçagem. Ao mulato caberia a reden-ção de nossa história que, diga-se de passagem, foi descrita por Freyre em sua obra magistral nos anos de 1930 como violenta e prenhe de conflitos. De teoria do Brasil à ideologia, de interpreta-ção do país à cultura nacional, a democracia social de Freyre, transformada em democracia racial, pa-recia ter vindo para ficar. Em todo caso, como tudo aquilo que chega em sua casa e parece se eternizar, tal interpretação não deixou de provocar incômodos desde o princípio. Já nos anos de 1930 e 1940, várias vozes levantaram-se no sentido de criticar essa visão autocomplacente que passara a predominar entre nós, e que teve conseqüências em projetos políticos e nas instituições. A percep-ção de que estaríamos diante de um mito não es-friou as críticas advindas dos movimentos negros que se espalharam pelo país, nem as da academia, e as representações paradoxais que surgiam nos tratados sobre identidade nacional, nas artes, na li-teratura ou nas manifestações da cultura popular acabaram por constituir uma arena de debate. Eis o Brasil repetidamente confirmado como nação naquilo que caracteriza essas entidades políticas modernas: antes de serem um produto material acabado, ou uma realidade social transparente, parece que temos diante de nós um debate sem fim, um foco virtual a orientar projetos e ansieda-des, instituições e expectativas, interpretações do passado e projeções de futuro. Antônio Sérgio Guimarães não se furta em nenhum momento à complexidade que se desenha diante de seus olhos. Num conjunto de ensaios que supera as fronteiras existentes entre as ciências sociais, o autor digladia-se igualmente com a lite-ratura propriamente sociológica e a que viria de uma tradição antropológica, com as vozes que vêm da arte e da literatura e aquela que se apresenta como proveniente de movimentos sociais. Afinal de contas, de identidade nacional se trata, e sobre ela, incluídos e excluídos, ricos e pobres, "brancos" e "negros", todos temos algo a dizer. Os principais interlocutores de Antônio Sér-gio são, com toda a certeza, de duas ordens dis-tintas. De um lado, seus pares: sociólogos e antro-pólogos; de outro, e em pé de igualdade, a inteligentsia vinculada aos movimentos sociais no Brasil, particularmente os movimentos negros. Para estes, o mito de democracia racial tornar-se-ia seu principal alvo, assim como para a literatu-ra especializada, de forma evidente a partir da dé-cada de 1970 e do acirramento das lutas pela democratização do país. Contra a ordem harmo-niosa e não-conflitiva pintada pelo enredo mítico, ergue-se a fala desmistificadora que revela a so-ciedade brasileira tal como ela é: racista e discri-minadora. A democracia racial teria se tornado uma espécie de instrumento ideológico que legi-tima as desigualdades e impede a transformação. 1 Numa leitura certamente interessada, já co-mum em nossa tradição intelectual, dois momen-tos se destacam: a década de 1930 e Gilberto Freyre, momento em que o mito é construído, e
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Thomaz, O. R. (2003). Democracia por entre classes e raças. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18(53), 170–172. https://doi.org/10.1590/s0102-69092003000300012
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